Entrevista concedida pelo treinador Jaime Pacheco aos jornalista António Magalhães e Paulo Sérgio e publicada na edição de ontem do jornal Record e transmitida na Antena1
RECORD - Quando chegou ao Restelo, ficou assustado?
JAIME PACHECO – Não. Cheguei num bom dia de sol e as pessoas foram excecionais na forma como me receberam. Naturalmente, por aquele vínculo tão longo que tive ao Boavista, poderia estar apreensivo, pois quando fui para o V. Guimarães passei por isso. Felizmente, não foi assim. Foi um dia fantástico. Senti que era importante para mim não só recomeçar a trabalhar mas porque vi na instituição uma grandeza que se confirmou.
R – Os sócios do Belenenses, nesse mesmo dia, lembraram-se daquela sua célebre frase: o quarto grande é o Boavista.
JP – Nunca disse isso. Fui confrontado com outro tipo de declarações que também nunca expressei. Para não criar um clima negativo, nem sequer me preocupei em desculpar ou repor a verdade. Estive num clube rival não apenas do Belenenses mas também do V. Guimarães, do Sp. Braga, do Marítimo, e despoletei um clima de rivalidade acrescentado. Na altura, o Boavista passou tudo e todos e como é óbvio os seus naturais adversários não gostaram. Tive, porém, sempre o cuidado de evitar a questão do quarto grande. Sempre disse que a história se encarregava de responder.
R- O assustado tinha a ver com a situação complicada, a todos os níveis, do Belenenses. Quando mergulhou na situação ficou ainda mais preocupado?
JP – Quando uma equipa, no início da temporada, começa o campeonato de forma tão negativa temos uma perceção das coisas que não é boa. Mas isso acontece devido a vários fatores: direção, treinador mas também jogadores. Analisei isso friamente a ponto de perceber que o defeito não era só do treinador, da direção ou dos adeptos. Teria estar também no grupo de trabalho.
R – Havia um grande défice de qualidade no plantel?
JP – Tinha a noção de que também havia qualidade, pois conhecia sobejamente os jogadores que transitaram de épocas anteriores. É verdade que é preciso dar tempo de adaptação aos novos, o que em Portugal não se faz com grande paciência. Senti-me com capacidade e força para alterar o rumo dos acontecimentos, mas também me confrontei com uma realidade mais complicada do que esperava. Havia bons profissionais mas outros de valor muito duvidoso. E eram 30!
R – Como se pode aceitar um plantel assim na primeira Liga?
JP – Como calcula, por respeito a quem fez esse trabalho e até como o fizeram, não vou comentar. Muitas vezes os treinadores são culpados por coisas de que não têm responsabilidade. Desde 2002 até hoje nunca fiz um plantel, nunca tive participação ativa da construção de 80 por cento de um plantel.
R – Nem nos anos de ouro do Boavista?
JP – Nem aí. E jamais algum treinador terá essa possibilidade.
R – Porquê?
JP – Porque vêm sempre jogadores de épocas anteriores. Depois há os ativos e as questões da sad, e depois há os jovens. E até as apostas dos presidentes! Têm sempre uma... E a componente financeira, claro. Naturalmente, tudo isso se reflete na equipa que idealizamos.
R - E também há os empresários. Alguma vez teve de lidar com essas influências?
JP – Como devem calcular, como nesta pergunta e noutras que eventualmente se seguirão, tenho de ser politicamente correto e ser inteligente a ponto de não entrar por esse caminho. Sabemos que na nossa atividade, as coisas deambulam para um lado ou outro por razões que desconhecemos. Tenho boa relação com todos os empresários, mas sempre dentro da ética do que é profissional e no interesse da própria instituição.
R – Numa entrevista ao Record já disse que não tinha negócios escuros com empresários... Há quem faça esses negócios?
JP – O que me faz perplexidade é o seguinte. Imagine que compro um jogador por 20 ou 25 milhões de euros; ele vem e não joga. Então, das duas uma: ou sou mau treinador ou o jogador não presta. Garanto-lhe: se contratasse um jogador por esse valor, ele jogava e bem! Eu também me interrogo: alguma coisa não bate certo.
R – O que foi preciso atacar primeiro no Belenenses?
JP – Analisar corretamente o que estava ao meu dispor para ter em cada jogo os melhores e mais disponíveis. Era fundamental criar equilíbrio, sustentado em bases e valores que permitissem adquirir confiança. Depois, logo se veria que ajustes era preciso fazer de acordo com as possibilidades.
R – E fez tantos que foi a equipa que mais mexidas operou no mercado de Inverno. Era a prova de um plantel fraco.
JP – Fazia questão de ir ao encontro do que era possível, acrescentando qualidade com jogadores que tivessem experiência do nosso futebol. O Belenenses tem cumprido religiosamente tudo o que são as suas obrigações. Senti que teria de diminuir o plantel e procurar jogadores a preços compatíveis com a realidade do clube. Se tirei 5 no valor de 100, teria de meter 5 no valor de 50. Felizmente, conseguimo-lo, melhorando a qualidade da equipa e equilibrando-a.
R – Agora a equipa já está equilibrada?
JP- Está. Procurámos outras soluções, mas em função do que achei mais correto estas escolhas foram minhas e foram as melhores. A equipa necessitava de jogadores com características como o Ávalos, o Diakité e o Saulo. O Belenenses jogava bem, mas que conquistava pouco.
R – Como assim, era macia?
JP – Não, mas era uma equipa que só recuperava a bola se o adversário a perdesse... Não era um grupo de guerreiros capazes de conquistar terras, só se houvesse o abandono das mesmas.
R – A propósito. A imagem de marca do Boavista campeão era a agressividade. Nos últimos jogos do Belenenses, por exemplo, a equipa fez menos faltas do que o Benfica (18/19) e praticamente as mesmas do que o FC Porto (17/15). O Boavistão chegou a fazer mais de 30 faltas por jogo. O que mudou?
JP – Nada! Desde miúdo que temos as nossas simpatias e os nossos gostos. Depois temos apreço por clubes que classificamos de simpáticos. Há muitos anos, os simpáticos era o Boavista, o Belenenses e a Académica. Agora simpáticos só o Belenenses e a Académica. Só me apelidaram de ser um treinador de equipas agressivas quando o Boavista foi campeão. Antes fui treinador P. Ferreira e do V. Guimarães e nesses anos do Vitória -- que deixou de oscilar entre época boa-e-época má, indo inclusivamente à Europa -- jogávamos um futebol brilhante.
R – Então é mais fama que proveito?
JP – Não, foi é depois de ser campeão.
R – Quer então tornar o Belenenses numa equipa pouco simpática?
JP – Quero ganhar, como é óbvio. O Belenenses só deixará de ser simpático quando ganhar.
R – Quanto tempo então precisa para levar o Belenenses a ser campeão?
JP – Não posso prometer nada. Já passei por isso e no Boavista fizemos uma história bonita. Basta ler as declarações dos treinadores das equipas principais do nosso futebol que estão sempre a reclamar tempo. É preciso ter conhecimento da equipa e desta dela própria. Os processos que tem de assimilar, tudo isso. Nós, agora, estamos a fazer isso em competição. Até tenho dificuldades em realizar mudanças de ordem tática, pois estaria a correr riscos e a pôr em causa resultados que é aquilo que mais nos interessa. Há uma coisa fundamental e que me permite falar com muita confiança: a administração do Belenenses. Se nós tivemos coragem em vir treinar o Belenenses, eles tiveram coragem muito maior em assumir as suas responsabilidades. Têm sido pessoas excecionais, inexcedíveis na forma como nos apoiam no dia a dia. Respondendo em concreto: para voltar a ser campeão teria de continuar e os dirigentes liderados pelo dr. João Barbosa pudessem continuar. Dão-nos a esperança de que isso possa vir a acontecer no futuro. Tenho a noção de que o Belenenses necessita de estabilidade que esta direção lhe pode dar.
R – José Pedro disse que a época vai ser de sofrimento até ao fim. Concorda?
JP – Concordo. É uma época que se começa em défice. A todos os níveis. Não é de um dia para o outro que se faz uma equipa. A integração de Diakité melhorou alguns aspetos defensivos. Levávamos muitos golos... Nestes últimos tempos, exceção feita ao FC Porto, não vi equipa que nos tenha sido superior. Sinto que se ganharmos 2 ou 3 jogos seguidos, voltamos à normalidade. No início deste meu ciclo procurei dar muita confiança aos jogadores e nunca deixei entrar desânimo na nossa casa. Foi das lutas maiores.
R – Silas já demonstrou desconforto pelo fato de ainda não ter renovado. Quando é que Pacheco toma decisões nesta matéria?
JP – O Silas é um otimo jogador e profissional. Respeito a sua opinião. Mas o que importa, chegados a este momento pós-reestruturação, é melhorar a classificação do Belenenses. A prioridade é a estabilidade do clube. Conseguido isso, a direção poderá virar-se para outras questões. Nalgumas conversas que tenho com atual direção não posso aprofundar o futuro, pois eu próprio não sei se continuo.
R – Nem a direção...
JP – Pois é. Há outras prioridades, como disse.
R – Então como se pode trabalhar bem com todas essas dúvidas?
JP – Quero ser solução, não quero ser problema. Vim para ajudar e dar o melhor de mim. É o que vou fazer. Trabalhar para que as pessoas se sintam satisfeitas.
R – Acha que estão?
JP – Eu estou! Estou muito satisfeito por estar no Belenenses, com esta direção e com o grupo de trabalho. Os jogadores, mesmo com dificuldades para trabalhar, nunca os ouvi queixarem-se de nada. Aceitam tudo e aplicam-se como grandes profissionais que são. Por isso acredito que o futuro será melhor. O que me preocupa é que o Belenenses tenha mais vitórias e mais pontos, pois merece estar noutro lugar. Às vezes digo: nós jogamos bem de mais para o lugar que ocupamos. Mas temos de ser mais práticos e realistas.
R – Quando fala em dificuldades para trabalhar, refere-se a quê?
JP – As condições são difíceis, mas isso é um problema que tenho de resolver. Não posso passar para a opinião pública qualquer problema. Porque senão não tínhamos ido a Angola... Não nos vamos escudar em nada. Se calhar, era o que deveria fazer, mas eu nunca fui de arranjar desculpas. A minha missão é arranjar soluções. Havemos de encontrá-las
R– O Boavista é o seu grande amor. Quando olha para o que se passa no clube o que sente?
JAIME PACHECO – Acho que foram muito injustos para com o Boavista. Quem decidiu condená-lo vai ter problemas de consciência até morrer. Aquilo conheço do futebol português dava para fazer um filme com tanta ação ou mais do que tinha o Padrinho e outros. Uma saga sem fim. Aproveitaram a fragilidade financeira do Boavista e quiseram tapar o sol com a peneira. Segundo o meu “parecer”, o Boavista não fez nada de grave que os outros não tenham feito.
R – Quando fala no Padrinho está a dar alguma conotação mafiosa ao assunto?
JP – Não, não. É apenas um exemplo para que as pessoas percebam que se fizerem o filme todo, a ação não teria fim.
R – O Boavista deve-lhe muito, assim como você terá uma dívida de gratidão para com o clube?
JP - Da relação pessoal e profissional que tenho com os clubes, só falo das coisas positivas. Nós portugueses só falamos de crises e desgraças. Em sentido figurado, somos piores do que os velhos do Restelo. Quando temos de avaliar alguém de zero a dez, se a pessoa tiver 8 qualidades só falamos dos 2 defeitos. Eu não sou assim. Eu é que devo muito ao Boavista. Proporcionou-me muitos bons momentos.
R – Financeiramente o Boavista deve-lhe muito dinheiro?
JP – [pausa] Honestamente, isso não me preocupa muito. Gostaria que por direito próprio fosse feita justiça ao Boavista e o clube voltasse à liga principal. O Boavista perdeu na secretaria como aconteceu ao Belenenses na Taça da Liga.
R – Ainda mantém relações com a família Loureiro?
JP – Eu não me chateio nem me zango com ninguém. Se porventura há alguma incompatibilidade, são os outros que deixam de falar comigo. Durante todo o meu trajeto desportivo houve muita gente que me fez mal, mas eu perdoei a todos e nesse aspeto continuo a manter boas relações. Essas pessoas trataram-me bem, deram-me oportunidade de eu ser feliz muitos anos. Aquela gente, os Loureiros e todos os boavisteiros, devo-lhes muito. E eu retribuo com a mesma amizade.
Mulher de Diakité já venceuR – Esta época já foi derrotado por uma mulher: a noiva de Diakité.
JP – Não tinha o direito de obrigar Diakité a jogar num dia tão especial como o do seu casamento. Mas digo-lhe uma coisa: se fosse eu tinha ido jogar. A paixão que tenho pelo futebol é imensa. E ainda por cima o jogo era no estádio da Luz. Ah, pode ter a certeza que tinha ido a correr para o jogo e levava a mulher pela mão!
A fugir de Mozer
R – Viu algum jogador interessante em Angola?
JP – Eles são todos da mesma cor e é difícil depois distingui-los. Mas gostei com um nome conhecido, Lami, que jogou a defesa-direito. É interessante. Há uns anos disse que gostava de jogadores altos, feios e agressivos no sector defensivo. Olhe, um que admirei e que sempre fugi dele a sete pés: o Mozer. O Jorge Costa, o Fernando Couto, o Luisão, o Bruno Alves fizeram e fazem carreira. São jogadores que intimidam e são essenciais. Esse Lami achei interessante
RECORD - O saldo de Pacheco com os grandes é admirável. O nosso companheiro Rui Dias até o chamou de Robin dos Bosques...
JAIME PACHECO - Dá-me gozo. Creio que o Benfica nunca me ganhou na condição de visitante e a primeira vez que o FC Porto perdeu no estádio novo foi comigo, assim como em 100 anos de história a primeira vez que o Boavista ganhou nas velhas Antas foi também comigo.
R – Há algum segredo?
JP – Os jogadores.
R – Sim, mas poucos têm este registo...
JP – Também já treino há uns anitos... Talvez por ter o conhecimento do “outro lado”. Têm razão aqueles que falam no cheiro do balneário. Sei o que é estar do lado de lá. Eles também são humanos e tem as suas fragilidades, nervosismo, ansiedade.
R - O Belenenses vai terminar o campeonato na Luz, num jogo que pode ser fundamental para as duas equipas cumprirem objectivos.
JP- Que seja fundamental só para o Benfica.
R – Pode o Belenenses estar a lutar por um lugar europeu...
JP – Vamos ser humildes e realistas. Não pensem nisso! Europa, não. Manutenção, sim. Mas vamos fazer uma 2ª volta muito boa.
R - Estes dois jogos (Liga e Carlsberg) foram muito equilibrados. Já percebeu como é que se pode ‘dar a volta’ ao Benfica de Quique?
JP – No papel consigo tudo. Na prática é que é complicado. O fundamental nessas alturas é saber com quem conto, mas é uma preocupação menor pois sei que tenho ali gente com muito valor e disponibilidade.
R – Mas é mais fácil enganar o Benfica do que o FC Porto?
JP – Naquele momento, foi. Joguei no FC Porto e no Sporting. Em termos de mentalidade e cultura desportiva, as diferenças mantêm-se entre o norte e o sul. Aqui no sul, não é que não se seja bom profissional ou responsável, mas idolatram-se as coisas antes delas acontecerem. Valoriza-se antes de se concretizarem. No norte, é preciso demonstrar primeiro. Só depois nos dão o valor. Aqui, basta dar um ar de sua graça.
«Quem batizou o Hulk merece um prémio»
R - Já defrontou Benfica e FC Porto. Vem aí um clássico. Como é que o analisa e projecta?
JP – Tudo pode acontecer. O FC Porto no momento é a melhor equipa. Tem uma estrutura sólida e 3 ou 4 jogadores na frente em muito boa forma. O Lucho não está tão forte como noutros anos, mas o Lisandro, o Rodríguez e o Hulk – quem o batizou merece um prémio!
R – Assustou-o?
JP- Um pouco, é verdade. Com 2-0 fiquei um pouco apreensivo. O FC Porto se calhar veio mais forte, porque vinha avisado, pois tínhamos jogado muito bem com o Benfica. Esse jogo tirou-nos um pouquinho de humildade. Quisemos jogar como o FC Porto e nós não temos, ainda, capacidade para ser equipa grande. E nós jogámos como uma equipa grande contra uma grande equipa. Não o devíamos ter feito.
R – O FC Porto parte pois em vantagem?
JP – Sim e o fator casa pode ser importante. Não questiono sequer o jogo a meio da semana e as alterações. Isso não é desculpa.
R – Mas o Benfica não poupou ninguém...
JP – Hoje há tantas formas de recuperar os jogadores e a qualidade dos treinadores é tão boa que não há desculpa para dizer que os jogadores possam acusar desgaste ou cansaço.
R – Viu alguma fragilidade no FC Porto?
JP – Vi uma equipa humilde, rigorosa, prática e objetiva. Vi um jogador que muito admiro, o Bruno Alves, além do Rolando, a jogar sem cerimónias: assim como a bola vinha, assim a bola ia. Sabem que a missão deles é defender, e fazem-no de qualquer maneira. O FC Porto é assim: prático.
R – E o que mais gostou no Benfica?
JP – Tem bons jogadores. O Suazo é muito perigoso.
R – Ainda não tem uma boa equipa?
JP – Se calhar, como todos os treinadores precisam de tempo.